Ensinar, aprender: leitura
do mundo, leitura da palavra
NENHUM TEMA mais adequado para
constituir-se em objeto desta primeira carta a quem ousa ensinar do que a
significação crítica desse ato, assim como a significação igualmente crítica de
aprender. É que não existe ensinar sem aprender e com isto eu quero dizer mais
do que diria se dissesse que o ato de ensinar exige a existência de quem ensina
e de quem aprende. Quero dizer que ensinar e aprender se vão dando de tal
maneira que quem ensina aprende, de um lado, porque reconhece um conhecimento
antes aprendido e, de outro, porque, observado a maneira como a curiosidade do
aluno aprendiz trabalha para apreender o ensinando-se, sem o que não o aprende,
o ensinante se ajuda a descobrir incertezas, acertos, equívocos.
O aprendizado do ensinante ao
ensinar não se dá necessariamente através da retificação que o aprendiz lhe
faça de erros cometidos. O aprendizado do ensinante ao ensinar se verifica à
medida em que o ensinante, humilde, aberto, se ache permanentemente disponível
a repensar o pensado, rever-se em suas posições; em que procura envolver-se com
a curiosidade dos alunos e dos diferentes caminhos e veredas, que ela os faz
percorrer. Alguns desses caminhos e algumas dessas veredas, que a curiosidade
às vezes quase virgem dos alunos percorre, estão grávidas de sugestões, de
perguntas que não foram percebidas antes pelo ensinante. Mas agora, ao ensinar,
não como um burocrata da mente, mas reconstruindo os caminhos de sua
curiosidade — razão por que seu corpo consciente, sensível, emocionado, se abre
às adivinhações dos alunos, à sua ingenuidade e à sua criatividade — o
ensinante que assim atua tem, no seu ensinar, um momento rico de seu aprender.
O ensinante aprende primeiro a ensinar mas aprende a ensinar ao ensinar algo
que é reaprendido por estar sendo ensinado.
O fato, porém, de que ensinar
ensina o ensinante a ensinar um certo conteúdo não deve significar, de modo
algum, que o ensinante se aventure a ensinar sem competência para fazê-lo. Não
o autoriza a ensinar o que não sabe. A responsabilidade ética, política e
profissional do ensinante lhe coloca o dever de se preparar, de se capacitar,
de se formar antes mesmo de iniciar sua atividade docente. Esta atividade exige
que sua preparação, sua capacitação, sua formação se tornem processos
permanentes. Sua experiência docente, se bem percebida e bem vivida, vai
deixando claro que ela requer uma formação permanente do ensinante. Formação
que se funda na análise crítica de sua prática.
Partamos da experiência de
aprender, de conhecer, por parte de quem se prepara para a tarefa docente, que
envolve necessariamente estudar. Obviamente, minha intenção não é escrever
prescrições que devam ser rigorosamente seguidas, o que significaria uma
chocante contradição com tudo o que falei até agora. Pelo contrário, o que me
interessa aqui, de acordo com o espírito mesmo deste livro, é desafiar seus
leitores e leitoras em torno de certos pontos ou aspectos, insistindo em que há
sempre algo diferente a fazer na nossa cotidianidade educativa, quer dela
participemos como aprendizes, e portanto ensinantes, ou como ensinantes e, por
isso, aprendizes também.
Não gostaria, assim, sequer, de
dar a impressão de estar deixando absolutamente clara a questão do estudar, do
ler, do observar, do reconhecer as relações entre os objetos para conhecê-los.
Estarei tentando clarear alguns dos pontos que merecem nossa atenção na
compreensão crítica desses processos.
Comecemos por estudar, que
envolvendo o ensinar do ensinante, envolve também de um lado, a aprendizagem
anterior e concomitante de quem ensina e a aprendizagem do aprendiz que se
prepara para ensinar amanhã ou refaz seu saber para melhor ensinar hoje ou, de
outro lado, aprendizagem de quem, criança ainda, se acha nos começos de sua
escolarização.
Enquanto preparação do sujeito
para aprender, estudar é, em primeiro lugar, um que-fazer crítico, criador,
recriador, não importa que eu nele me engaje através da leitura de um texto que
trata ou discute um certo conteúdo que me foi proposto pela escola ou se o
realizo partindo de uma reflexão crítica sobre um certo acontecimentos social
ou natural e que, como necessidade da própria reflexão, me conduz à leitura de
textos que minha curiosidade e minha experiência intelectual me sugerem ou que
me são sugeridos por outros.
Assim, em nível de uma posição
crítica, a que não dicotomiza o saber do senso comum do outro saber, mais
sistemático, de maior exatidão, mas busca uma síntese dos contrários, o ato de
estudar implica sempre o de ler, mesmo que neste não se esgote. De ler o mundo,
de ler a palavra e assim ler a leitura do mundo anteriormente feita. Mas ler
não é puro entretenimento nem tampouco um exercício de memorização mecânica de
certos trechos do texto.
Se, na verdade, estou estudando e
estou lendo seriamente, não posso ultra-passar uma página se não consegui com
relativa clareza, ganhar sua significação. Minha saída não está em memorizar
porções de períodos lendo mecanicamente duas, três, quatro vezes pedaços do
texto fechando os olhos e tentando repeti-las como se sua fixação puramente
maquinal me desse o conhecimento de que preciso.
Ler é uma operação inteligente,
difícil, exigente, mas gratificante. Ninguém lê ou estuda autenticamente se não
assume, diante do texto ou do objeto da curiosidade a forma crítica de ser ou
de estar sendo sujeito da curiosidade, sujeito da leitura, sujeito do processo
de conhecer em que se acha. Ler é procurar buscar criar a compreensão do lido;
daí, entre outros pontos fundamentais, a importância do ensino correto da
leitura e da escrita. É que ensinar a ler é engajar-se numa experiência
criativa em torno da compreensão. Da compreensão e da comunicação.
E a experiência da compreensão
será tão mais profunda quanto sejamos nela capazes de associar, jamais
dicotomizar, os conceitos emergentes da experiência escolar aos que resultam do
mundo da cotidianidade. Um exercício crítico sempre exigido pela leitura e
necessariamente pela escuta é o de como nos darmos facilmente à passagem da
experiência sensorial que caracteriza a cotidianidade à generalização que se
opera na linguagem escolar e desta ao concreto tangível. Uma das formas de
realizarmos este exercício consiste na prática que me venho referindo como
"leitura da leitura anterior do mundo", entendendo-se aqui como
"leitura do mundo" a "leitura" que precede a leitura da
palavra e que perseguindo igualmente a compreensão do objeto se faz no domínio
da cotidianidade. A leitura da palavra, fazendo-se também em busca da
compreensão do texto e, portanto, dos objetos nele referidos, nos remete agora
à leitura anterior do mundo. O que me parece fundamental deixar claro é que a
leitura do mundo que é feita a partir da experiência sensorial não basta. Mas,
por outro lado, não pode ser desprezada como inferior pela leitura feita a
partir do mundo abstrato dos conceitos que vai da generalização ao tangível.
Certa vez, uma alfabetizanda
nordestina discutia, em seu círculo de cultura, uma codificação (1) que
representava um homem que, trabalhando o barro, criava com as mãos, um jarro.
Discutia-se, através da "leitura" de uma série de codificações que,
no fundo, são representações da realidade concreta, o que é cultura. O conceito
de cultura já havia sido apreendido pelo grupo através do esforço da
compreensão que caracteriza a leitura do mundo e/ou da palavra. Na sua
experiência anterior, cuja memória ela guardava no seu corpo, sua compreensão
do processo em que o homem, trabalhando o barro, criava o jarro, compreensão
gestada sensorialmente, lhe dizia que fazer o jarro era uma forma de trabalho
com que, concretamente, se sustentava. Assim como o jarro era apenas o objeto,
produto do trabalho que, vendido, viabilizava sua vida e a de sua família.
Agora, ultrapassando a
experiência sensorial, indo mais além dela, dava um passo fundamental:
alcançava a capacidade de generalizar que caracteriza a "experiência
escolar". Criar o jarro como o trabalho transformador sobre o barro não
era apenas a forma de sobreviver, mas também de fazer cultura, de fazer arte.
Foi por isso que, relendo sua leitura anterior do mundo e dos que-fazeres no
mundo, aquela alfabetizanda nordestina disse segura e orgulhosa: "Faço
cultura. Faço isto".
Paulo Reglus Neves Freire nasceu
no dia 19 de setembro de 1921 em Recife, Pernambuco. Aprendeu a ler e a
escrever com os pais, à sombra das árvores do quintal da casa em que nasceu.
Tinha oito anos quando a família teve que se mudar para Jaboatão, a 18 km de
Recife. Aos 13 anos perdeu o pai e seus estudos tiveram que ser adiados. Entrou
no ginásio com 16 anos. Aos 20 conseguiu uma vaga na Faculdade de Direito do
Recife.
O estudo da linguagem do povo foi
um dos pontos de partida da elaboração pedagógica de Paulo Freire, para o que
também foi muito significativo o seu envolvimento com o Movimento de Cultura
Popular (MCP) do Recife. Foi um dos fundadores do Serviço de Extensão Cultural
da Universidade do Recife e seu primeiro diretor. Através desse trabalho
elaborou os primeiros estudos de um novo método de alfabetização, que expôs em
1958. As primeiras experiências do Método Paulo Freire começaram na cidade de
Angicos, no Rio Grande do Norte, em 1962, onde 300 trabalhadores foram
alfabetizados em 45 dias. No ano seguinte, foi convidado pelo presidente João
Goulart para repensar a alfabetização de adultos em âmbito nacional. O golpe
militar interrompeu os trabalhos e reprimiu toda a mobilização popular.
Paulo Freire foi preso, acusado
de comunista. Foram 16 anos de exílio, dolorosos, mas também muito produtivos:
uma estadia de cinco anos no Chile como consultor da Unesco no Instituto de
Capacitação e Investigação em Reforma Agrária; uma mudança para Genebra, na
Suíça em 1970, para trabalhar como consultor do Conselho Mundial de Igejas,
onde desenvolveu programas de alfabetização para a Tanzânia e Guiné-Bissau, e
ajudou em campanhas no Peru e Nicaraguá; em 1980, voltou definitivamente ao
país, passando a ser professor da PUC-SP e da Univesidade de Campinas
(Unicamp). Uma das experiências significativas de Paulo Freire foi ter
trabalhado como secretário da Educação da Prefeitura de São Paulo, na gestão
Luiza Erundina (PT), entre 1989 e 1991. Paulo Freire morreu no dia 2 de maio de
1997, aos 76 anos de idade, em plena atividade de educador e de pensador.
Estava casado com Ana Maria (Nita) Araújo Freire, também educadora.
É autor dos livros Educação como
prática da liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; Pedagogia do oprimido.
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1970; Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro, Paz
e Terra, 1971; Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1976; Cartas à Guiné-Bissau. Registros de uma experiência
em processo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977; Educação e mudança. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1979; A importância do ato de ler em três artigos que se
completam. São Paulo, Cortez, 1982; A Educação na cidade. São Paulo, Cortez,
1991; Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1992; Política e educação. São Paulo, Cortez, 1993; Professora
sim, Tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo, Olho D'Água, 1993; Cartas
a Cristina. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1994; À sombra desta mangueira. São
Paulo, Olho D'Água, 1995. Pedagogia de autonomia. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1996. Pedagogia da indignação. São Paulo, Editora da Unesp, 2000.
Noutra ocasião presenciei
experiência semelhante do ponto de vista da inteligência do comportamento das
pessoas. Já me referi a este fato em outro trabalho mas não faz mal que o
retome agora. Me achava na Ilha de São Tomé, na África Ocidental, no Golfo da
Guiné. Participava com educadores e educadoras nacionais, do primeiro curso de
formação para alfabetizadores.
Havia sido escolhido pela equipe
nacional um pequeno povoado, Porto Mont, região de pesca, para ser o centro das
atividades de formação. Havia sugerido aos nacionais que a formação dos
educadores e educadoras se fizesse não seguindo certos métodos tradicionais que
separam prática de teoria. Nem tampouco através de nenhuma forma de trabalho
essencialmente dicotomizante de teoria e prática e que ou menospreza a teoria,
negando-lhe qualquer importância, enfatizando exclusivamente a prática, a única
a valer, ou negando a prática fixando-se só na teoria. Pelo contrário, minha
intenção era que, desde o começo do curso, vivêssemos a relação contraditória
entre prática e teoria, que será objeto de análise de uma de minhas cartas.
Recusava, por isso mesmo, uma
forma de trabalho em que fossem reservados os primeiros momentos do curso para
exposições ditas teóricas sobre matéria fundamental de formação dos futuros
educadores e educadoras. Momento para discursos de algumas pessoas, as
consideradas mais capazes para falar aos outros.
Minha convicção era outra.
Pensava numa forma de trabalho em que, numa única manhã, se falasse de alguns
conceitos-chave — codificação, decodificação, por exemplo — como se
estivéssemos num tempo de apresentações, sem, contudo, nem de longe imaginar
que as apresentações de certos conceitos fossem já suficientes para o domínio
da compreensão em torno deles. A discussão crítica sobre a prática em que se
engajariam é o que o faria.
Assim, a idéia básica, aceita e
posta em prática, é que os jovens que se preparariam para a tarefa de
educadoras e educadores populares deveriam coordenar a discussão em torno de
codificações num círculo de cultura com 25 participantes. Os participantes do
círculo de cultura estavam cientes de que se tratava de um trabalho de
afirmação de educadores. Discutiu-se com eles antes sua tarefa política de nos
ajudar no esforço de formação, sabendo que iam trabalhar com jovens em pleno
processo de sua formação. Sabiam que eles, assim como os jovens a serem
formados, jamais tinham feito o que iam fazer. A única diferença que os marcava
é que os participantes liam apenas o mundo enquanto os jovens a serem formados
para a tarefa de educadores liam já a palavra também. Jamais, contudo, haviam
discutido uma codificação assim como jamais haviam tido a mais mínima
experiência alfabetizando alguém.
Em cada tarde do curso com duas
horas de trabalho com os 25 participantes, quatro candidatos assumiam a direção
dos debates. Os responsáveis pelo curso assistiam em silêncio, sem interferir,
fazendo suas notas. No dia seguinte, no seminário de avaliação de formação, de
quatro horas, se discutiam os equívocos, os erros e os acertos dos candidatos,
na presença do grupo inteiro, desocultando-se com eles a teoria que se achava
na sua prática.
Dificilmente se repetiam os erros
e os equívocos que haviam sido cometidos e analisados. A teoria emergia molhada
da prática vivida.
Foi exatamente numa das tardes de
formação que, durante a discussão de uma codificação que retratava Porto Mont,
com suas casinhas alinhadas à margem da praia, em frente ao mar, com um
pescador que deixava seu barco com um peixe na mão, que dois dos participantes,
como se houvessem combinado, se levantaram, andaram até a janela da escola em
que estávamos e olhando Porto Mont lá longe, disseram, de frente novamente para
a codificação que representava o povoado: "É. Porto Mont é assim e não
sabíamos".
Até então, sua
"leitura" do lugarejo, de seu mundo particular, uma
"leitura" feita demasiadamente próxima do "texto", que era
o contexto do povoado, não lhes havia permitido ver Porto Mont como ele era.
Havia uma certa "opacidade" que cobria e encobria Porto Mont. A
experiência que estavam fazendo de "tomar distância" do objeto, no
caso, da codificação de Porto Mont, lhes possibilitava uma nova leitura mais
fiel ao "texto", quer dizer, ao contexto de Porto Mont. A
"tomada de distância" que a "leitura" da codificação lhes
possibilitou os aproximou mais de Porto Mont como "texto" sendo lido.
Esta nova leitura refez a leitura anterior, daí que hajam dito: "É. Porto
Mont é assim e não sabíamos". Imersos na realidade de seu pequeno mundo,
não eram capazes de vê-la. "Tomando distância" dela, emergiram e,
assim, a viram como até então jamais a tinham visto.
Estudar é desocultar, é ganhar a
compreensão mais exata do objeto, é perceber suas relações com outros objetos.
Implica que o estudioso, sujeito do estudo, se arrisque, se aventure, sem o que
não cria nem recria.
Por isso também é que ensinar não
pode ser um puro processo, como tanto tenho dito, de transferência de
conhecimento do ensinante ao aprendiz. Transferência mecânica de que resulte a
memorização maquinal que já critiquei. Ao estudo crítico corresponde um ensino
igualmente crítico que demanda necessariamente uma forma crítica de compreender
e de realizar a leitura da palavra e a leitura do mundo, leitura do contexto.
A forma crítica de compreender e
de realizar a leitura da palavra e a leitura do mundo está, de um lado, na não
negação da linguagem simples, "desarmada", ingênua, na sua não
desvalorização por constituir-se de conceitos criados na cotidianidade, no
mundo da experiência sensorial; de outro, na recusa ao que se chama de
"linguagem difícil", impossível, porque desenvolvendo-se em torno de
conceitos abstratos. Pelo contrário, a forma crítica de compreender e de
realizar a leitura do texto e a do contexto não exclui nenhuma da duas formas
de linguagem ou de sintaxe. Reconhece, todavia, que o escritor que usa a
linguagem científica, acadêmica, ao dever procurar tornar-se acessível, menos
fechado, mais claro, menos difícil, mais simples, não pode ser simplista.
Ninguém que lê, que estuda, tem o
direito de abandonar a leitura de um texto como difícil porque não entendeu o
que significa, por exemplo, a palavra epistemologia.
Assim como um pedreiro não pode
prescindir de um conjunto de instrumentos de trabalho, sem os quais não levanta
as paredes da casa que está sendo construída, assim também o leitor estudioso
precisa de instrumentos fundamentais, sem os quais não pode ler ou escrever com
eficácia. Dicionários (2), entre eles o etimológico, o de regimes de verbos, o
de regimes de substantivos e adjetivos, o filosófico, o de sinônimos e de
antônimos, enciclopédias. A leitura comparativa de texto, de outro autor que
trate o mesmo tema cuja linguagem seja menos complexa.
Usar esses instrumentos de
trabalho não é, como às vezes se pensa, uma perda de tempo. O tempo que eu uso
quando leio ou escrevo ou escrevo e leio, na consulta de dicionários e
enciclopédias, na leitura de capítulos, ou trechos de livros que podem me
ajudar na análise mais crítica de um tema — é tempo fundamental de meu
trabalho, de meu ofício gostoso de ler ou de escrever.
Enquanto leitores, não temos o
direito de esperar, muito menos de exigir, que os escritores façam sua tarefa,
a de escrever, e quase a nossa, a de compreender o escrito, explicando a cada
passo, no texto ou numa nota ao pé da página, o que quiseram dizer com isto ou
aquilo. Seu dever, como escritores, é escrever simples, escrever leve, é
facilitar e não dificultar a compreensão do leitor, mas não dar a ele as coisas
feitas e prontas.
A compreensão do que se está
lendo, estudando, não estala assim, de repente, como se fosse um milagre. A
compreensão é trabalhada, é forjada, por quem lê, por quem estuda que, sendo
sujeito dela, se deve instrumentar para melhor fazê-la. Por isso mesmo, ler,
estudar, é um trabalho paciente, desafiador, persistente.
Não é tarefa para gente demasiado
apressada ou pouco humilde que, em lugar de assumir suas deficiências, as
transfere para o autor ou autora do livro, considerado como impossível de ser
estudado.
É preciso deixar claro, também,
que há uma relação necessária entre o nível do conteúdo do livro e o nível da
atual formação do leitor. Estes níveis envolvem a experiência intelectual do
autor e do leitor. A compreensão do que se lê tem que ver com essa relação.
Quando a distância entre aqueles níveis é demasiado grande, quanto um não tem
nada que ver com o outro, todo esforço em busca da compreensão é inútil. Não
está havendo, neste caso, uma consonância entre o indispensável tratamento dos
temas pelo autor do livro e a capacidade de apreensão por parte do leitor da
linguagem necessária àquele tratamento. Por isso mesmo é que estudar é uma
preparação para conhecer, é um exercício paciente e impaciente de quem, não
pretendendo tudo de uma vez, luta para fazer a vez de conhecer.
A questão do uso necessário de
instrumentos indispensáveis à nossa leitura e ao nosso trabalho de escrever
levanta o problema do poder aquisitivo do estudante e das professoras e
professores em face dos custos elevados para obter dicionários básicos da
língua, dicionários filosóficos etc. Poder consultar todo esse material é um
direito que têm alunos e professores a que corresponde o dever das escolas de
fazer-lhes possível a consulta, equipando ou criando suas bibliotecas, com
horários realistas de estudo. Reivindicar esse material é um direito e um dever
de professores e estudantes.
Gostaria de voltar a algo a que
fiz referência anteriormente: a relação entre ler e escrever, entendidos como
processos que não se podem separar. Como processos que se devem organizar de
tal modo que ler e escrever sejam percebidos como necessários para algo, como
sendo alguma coisa de que a criança, como salientou Vygotsky (3), necessita e
nós também.
Em primeiro lugar, a oralidade
precede a grafia mas a traz em si desde o primeiro momento em que os seres
humanos se tornaram socialmente capazes de ir exprimindo-se através de símbolos
que diziam algo de seus sonhos, de seus medos, de sua experiência social, de
suas esperanças, de suas práticas.
Quando aprendemos a ler, o
fazemos sobre a escrita de alguém que antes aprendeu a ler e a escrever. Ao
aprender a ler, nos preparamos para imediatamente escrever a fala que
socialmente construímos.
Nas culturas letradas, sem ler e
sem escrever, não se pode estudar, buscar conhecer, apreender a substantividade
do objeto, reconhecer criticamente a razão de ser do objeto.
Um dos equívocos que cometemos
está em dicotomizar ler de escrever, desde o começo da experiência em que as
crianças ensaiam seus primeiros passos na prática da leitura e da escrita,
tomando esses processos como algo desligado do processo geral de conhecer. Essa
dicotomia entre ler e escrever nos acompanha sempre, como estudantes e
professores. "Tenho uma dificuldade enorme de fazer minha dissertação. Não
sei escrever", é a afirmação comum que se ouve nos cursos de pós-graduação
de que tenho participado. No fundo, isso lamentavelmente revela o quanto nos
achamos longe de uma compreensão crítica do que é estudar e do que é ensinar.
É preciso que nosso corpo, que
socialmente vai se tornando atuante, consciente, falante, leitor e
"escritor" se aproprie criticamente de sua forma de vir sendo que faz
parte de sua natureza, histórica e socialmente constituindo-se. Quer dizer, é
necessário que não apenas nos demos conta de como estamos sendo mas nos
assumamos plenamente com estes "seres programados, mas para
aprender", de que nos fala François Jacob (4). É necessário, então, que
aprendamos a aprender, vale dizer, que entre outras coisas, demos à linguagem
oral e escrita, a seu uso, a importância que lhe vem sendo cientificamente
reconhecida.
Aos que estudamos, aos que
ensinamos e, por isso, estudamos também, se nos impõe, ao lado da necessária
leitura de textos, a redação de notas, de fichas de leitura, a redação de
pequenos textos sobre as leituras que fazemos. A leitura de bons escritores, de
bons romancistas, de bons poetas, dos cientistas, dos filósofos que não temem
trabalhar sua linguagem a procura da boniteza, da simplicidade e da clareza
(5).
Se nossas escolas, desde a mais
tenra idade de seus alunos se entregassem ao trabalho de estimular neles o
gosto da leitura e o da escrita, gosto que continuasse a ser estimulado durante
todo o tempo de sua escolaridade, haveria possivelmente um número bastante
menor de pós-graduandos falando de sua insegurança ou de sua incapacidade de
escrever.
Se estudar, para nós, não fosse
quase sempre um fardo, se ler não fosse uma obrigação amarga a cumprir, se,
pelo contrário, estudar e ler fossem fontes de alegria e de prazer, de que
resulta também o indispensável conhecimento com que nos movemos melhor no
mundo, teríamos índices melhor reveladores da qualidade de nossa educação.
Este é um esforço que deve
começar na pré-escola, intensificar-se no período da alfabetização e continuar
sem jamais parar.
A leitura de Piaget, de Vygotsky,
de Emilia Ferreiro, de Madalena F. Weffort, entre outros, assim como a leitura
de especialistas que tratam não propriamente da alfabetização mas do processo
de leitura como Marisa Lajolo e Ezequiel T. da Silva é de indiscutível
importância.
Pensando na relação de intimidade
entre pensar, ler e escrever e na necessidade que temos de viver intensamente
essa relação, sugeriria a quem pretenda rigorosamente experimentá-la que, pelo
menos, três vezes por semana, se entregasse à tarefa de escrever algo. Uma nota
sobre uma leitura, um comentário em torno de um acontecimento de que tomou
conhecimento pela imprensa, pela televisão, não importa. Uma carta para
destinatário inexistente. É interessante datar os pequenos textos e guardá-los
e dois ou três meses depois submetê-los a uma avaliação crítica.
Ninguém escreve se não escrever,
assim como ninguém nada se não nadar.
Ao deixar claro que o uso da linguagem
escrita, portanto o da leitura, está em relação com o desenvolvimento das
condições materiais da sociedade, estou sublimando que minha posição não é
idealista.
Recusando qualquer interpretação
mecanicista da História, recuso igualmente a idealista. A primeira reduz a
consciência à pura cópia das estruturas materiais da sociedade; a segunda
submete tudo ao todo poderosismo da consciência. Minha posição é outra. Entendo
que estas relações entre consciência e mundo são dialéticas (6).
O que não é correto, porém, é
esperar que as transformações materiais se processem para que depois comecemos
a encarar corretamente o problema da leitura e da escrita.
A leitura crítica dos textos e do
mundo tem que ver com a sua mudança em processo.
Notas
1 Sobre codificação, leitura do
mundo-leitura da palavra-senso comum-conhecimento exato, aprender, ensinar,
veja-se: Freire, Paulo: Educação como prática da liberdade — Educação e mudança
— Ação cultural para a liberdade — Pedagogia do oprimido — Pedagogia da
esperança, Paz e Terra; Freire & Sérgio Guimarães, Sobre educação, Paz e
Terra; Freire & Ira Schor, Medo e ousadia, o cotidiano do educador, Paz e
Terra; Freire & Donaldo Macedo, Alfabetização, leitura do mundo e leitura
da palavra, Paz e Terra; Freire, Paulo, A importância do ato de ler, Cortez.
Freire & Márcio Campos; Leitura do mundo — Leitura da palavra, Courrier de
L'Unesco, fev. 1991.
2 Ver Freire, Paulo. Pedagogia da
esperança — um reencontro com a Pedagogia do oprimido, Paz e Terra, 1992.
3 Vygotsky and education. Instructional
implications and applications of sociohistorical psychology. Luis C. Moll
(ed.), Cambridge University Press, First paper back edition, 1992.
4 François Jacob, Nous sommes
programmés mais pour aprendre. Le Courrier de L'Unesco, Paris, fev. 1991.
5 Ver Freire, Paulo, Pedagogia da
esperança, Paz e Terra, 1992.
6 Id., ibid.
Esta carta foi retirada do livro
Professora sim, tia não. Cartas a quem ousa ensinar (Editora Olho D'Água, 10ª
ed., p. 27-38) no qual Paulo Freire dialoga sobre questões da construção de uma
escola democrática e popular. Escreve especialmente aos professores,
convocando-os ao engajamento nesta mesma luta. Este livro foi escrito durante
dois meses do ano de 1993, pouco tempo depois de sua experiência na condução da
Secretaria de Educação de São Paulo.
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